segunda-feira, dezembro 18, 2006

Um adeus Português

Nos teus olhos altamente perigosos


vigora ainda o mais rigoroso amor


a luz dos ombros pura e a sombra


duma angústia já purificada




Não tu não podias ficar presa comigo


à roda em que apodreço


apodrecemos


a esta pata ensanguentada que vacila


quase medita


e avança mugindo pelo túnel


de uma velha dor




Não podias ficar nesta cadeira


onde passo o dia burocrático


o dia-a-dia da miséria


que sobe aos olhos vem às mãos


aos sorrisos


ao amor mal soletrado


à estupidez ao desespero sem boca


ao medo perfilado


à alegria sonâmbula à vírgula maníaca


do modo funcionário de viver



Não podias ficar nesta casa comigo


em trânsito mortal até ao dia sórdido


canino


policial


até ao dia que não vem da promessa


puríssima da madrugada


mas da miséria de uma noite gerada


por um dia igual




Não podias ficar presa comigo


à pequena dor que cada um de


traz docemente pela mão



a esta pequena dor à portuguesa


tão mansa quase vegetal




Mas tu não mereces esta cidade não mereces


esta roda de náusea em que giramos


até à idiotia


esta pequena morte


e o seu minucioso e porco ritual


esta nossa razão absurda de ser



Não tu és da cidade aventureira


da cidade onde o amor encontra as suas ruas


e o cemitério ardente


da sua morte


tu és da cidade onde vives por um fio


de puro acaso


onde morres ou vives não de asfixia


mas às mãos de uma aventura de um comércio puro


sem a moeda falsa do bem e do mal


*


Nesta curva tão terna e lancinante


que vai ser que já é o teu desaparecimento


digo-te adeus


e como um adolescente


tropeço de ternura


por ti.



Alexandre O'Neill

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